Pistolagem, homicídio, suicídio,
desnutrição, alcoolismo, racismo, narcotráfico, desmatamento e falta de terra.
A expectativa de vida do maior grupo indígena do país é de 45 anos, só
comparável à do Afeganistão.
Parece que as pessoas estão
começando a se dar conta da problemática indígena neste país. Também, não é à
toa. Depois das lideranças Guarani-Kaiowá enviarem uma carta ao governo e à
justiça onde revelam a situação em que vivem e a intenção de cometerem suicídio
coletivo por causa das ações praticadas por fazendeiros, pistoleiros e falta de
atitude do governo Federal parece finalmente, que as pessoas entenderam que não se trata de
mais um caso sem importância, que acontece lá, longe do alcance dos nossos
olhos e da nossa culpa. No entanto são muitas as questões que precisam ser
observadas nesse contexto.
A história dos índios do Brasil
sempre foi crítica. Não é só o problema da terra, muito mais do que isso, e
talvez o mais grave, seja a perda de sua história, o desvio antropológico de um
povo que se vê cercado por paredes culturais remanescentes da colonização e não
estou aqui falando da colonização do Brasil pelos portugueses, mas da
colonização pragmática à sua vontade, que lhes impõem dogmas e conceitos que
não são verdadeiramente seus. O trabalho de grupos religiosos que pregam uma
religiosidade muito contrária, na verdade, aos ensinamentos mais clássicos do
verdadeiro cristianismo disseminando um proselitismo religioso brutal, onde se
substituí Tupã ou Nhanderú, por um Cristo e uma cruz que não lhes pertence.
As igrejas evangélicas em
especial são as mais ardentes na luta ferrenha para aniquilar uma crença
milenar que, verdadeiramente, se sobrepõe aos ensinamentos e as práticas
pregadas. Essa luta é injusta e talvez seja a pior delas porque os índios
simplesmente não podem argumentar sobre algo que desconhecem. Está em seu
espírito e formação a religiosidade ritualística, o entendimento que as ações
de Tupã se apresentam nas matas, nos rios e no ar. Como podem trocar seu Deus
por outro que sequer lhe fez algum bem através de seus “enviados” que, por
sinal, desrespeitam, ameaçam, punem. O deus Tupã ou Nhanderú não é punitivo assim.
De outro lado, falta ao governo
entender que índios não são fazendeiros, não criam ou não deveriam criar gado,
vivem basicamente e historicamente, da caça, da pesca, da coleta nas matas
nativas daquilo que precisam para a sobrevivência da aldeia. Índio não tem
despensa, não tem armário de cozinha e nem a cozinha. Crê fielmente que Tupã
lhes proverá no dia seguinte e que o alimento não faltará, pois está ali, solto
e livre como os próprios índios mas o homem branco está acabando com a fonte
natural de recursos.
Não se coloca índios dentro de
uma área demarcada esperando que eles consigam sobreviver da agricultura e
ainda pior, não se retira aldeias e tribos de uma região para outra porque ali
vai inundar por causa de uma usina hidrelétrica, vide Belo Monte, Jirau, Santo
Antônio e tantas outras ou porque aquela terra está em disputa e é necessário
aguardar a Justiça. Que Justiça?
Em 2007 fiz um documentário sobre
o trabalho de alguns missionários na região oeste de Santa Catarina onde o povo
guarani estava sob forte pressão de alguns políticos, sem lugar para viver, sem
sequer uma expectativa de vida adequada. Viviam em uma área emprestada pelos
povos kaigang, guerreiros, e se banhavam nas águas de um rio que continha
imenso volume de dejetos de suínos, jogados por criadores que vendem sua
produção para os grandes frigoríficos da região. Noventa por cento da aldeia
tinha hepatite e o pior, um olhar perdido, procurando sem saber o quê e sem
saber aonde. A cidade de Chapecó inteira está dentro de uma área indígena e os
verdadeiros donos da terra vivem nas periferias rurais, em pequenas áreas
demarcadas, tomando tiro quando alguma área lhes é devolvida.
Produtos utilizados em rituais
sagrados são vendidos pelos próprios índios como peças de artesanato, o alcoolismo
tem índices altíssimos e consomem a dignidade do ser humano, seja ele indígena
ou não, e a expectativa de vida praticamente não existe tamanho número de
ameaças e assassinatos.
Os indígenas estão perdendo sua
condição essencial para poder sobreviver a todos os problemas que estão
vivendo, a fé em sua própria verdade histórica, a sua identidade. Eles não
estão sendo massacrados apenas pelos fazendeiros, mas também pela falta de ação
do governo, pelas instituições religiosas e por eles mesmos ao se desencontrarem
de si mesmos.
Infelizmente hoje existem também
algumas aldeias ricas, com pick-ups, celulares, computadores. Há também a
barganha, a troca que já existia na época dos Villas Boas, só que hoje custam
bem mais caro do que os espelhos e arcos e flechas. As terras em troca de
escolas, carros, um Deus por outro. Trocas de verdades que jamais serão
assumidas e troca de condição de vida pela inevitável acomodação em futuras
favelas. E a pior de todas elas, a troca da vergonha pela falta dela, provocada
pela falta de dignidade levada pelo descaso de pessoas comuns como eu e você
que está lendo esse artigo.
Régis Estevez é editor executivo
do site Eco Reserva e produtor de documentários sobre o meio ambiente e
questões sociais.