No país do sexo anal, a vida pode
ser difícil para as mulheres
Um jornalista americano escreveu na revista
Vanity Fair que a grande palavra da cultura alemã é “merda”. Segundo ele, os
excrementos humanos e suas variações ocupam um lugar de destaque na língua e no
pensamento alemães. Como eu não entendo mais que 12 palavras em alemão, não
posso realmente julgar a afirmação, mas ela me fez pensar sobre qual seria a
palavra mais reveladora, mais carregada de sentidos e mais frequente do
português falado no Brasil - e aí não tenho dúvida que de que temos algo em
comum com os alemães. Se eles se lambuzam com a palavra “merda”, nós,
brasileiros, somos apaixonados pela palavra “cu”.
Ela aparece em todas as conversas
e permeia todas as relações, invariavelmente de um jeito vulgar, mas que todos
praticam. A gente diz que o Brasil é um cu, fala que fulano mora no cu do
mundo, lembra que o cu não tem a ver com as calças. E esse é apenas o
substantivo, o advérbio, o cu como sinônimo de coisa ruim. O outro uso da
palavra, ainda mais revelador, é como metáfora da penetração. Se o cara fechou
você no trânsito, você manda ele tomar... Porque dói. Se o chefe é injusto,
obviamente está pondo ... Porque humilha. Quando você se deu mal, claro, levou
... Porque fere. E se alguém está passando dos limites, você pergunta: na
bundinha não vai nada? Porque se trata de um abuso. Duvido que haja outro país
em que a mesma palavra – e a metáfora da penetração – sejam usadas com tanta
frequência e com tamanha intensidade emocional. Sobretudo na linguagem
masculina. São os homens que mais põem e levam, o tempo inteiro.
Não precisa ser o Contardo
Caligaris para perceber que este é um país de sodomitas, ao menos
retoricamente. Os homens brasileiros são obcecados por sexo anal, e por isso o
assunto transborda de forma tão exuberante na linguagem diária. Os marmanjos pensam e falam insistentemente
sobre o assunto, mesmo quando não praticam. O resultado dessa predileção real
ou imaginária é que o tema invade a rotina das mulheres. Em boa parte dos lares
brasileiros sexo anal é motivo de debate acirrado. Às vezes, é o grande impasse
sexual do relacionamento. O homem quer, a mulher resiste. E a conversa
continua.
Em privado, muitas mulheres
reclamam dessa insistência masculina. Elas às vezes cedem, com grande
desconforto, para que o sujeito não vá realizar a mesma fantasia com outra
mulher. Sexo anal muitas vezes é um sacrifício, um gesto de amor que o parceiro
nem sempre percebe como tal. As mulheres muitas vezes se embriagam para
permitir que aconteça. Usam anestésico para reduzir as sensações ruins. Veem
cursos na internet para aprender o jeito menos dolorido de se deixar penetrar.
Isso tudo antes. Depois que acontece, elas reclamam de outras coisas. A
primeira é a dor, presente durante e depois do sexo. A outra é que o parceiro,
tendo vencido essa fronteira, acha que a passagem ficou livre. Em vez de
diminuir, a concessão aumenta a pressão por dar o cu. Outra vez.
Mas essa é apenas parte da
história. A outra envolve as mulheres que gostam de sexo anal. Há muitas delas,
verdadeiras entusiastas. Por razões que podem ser psicológicas ou físicas – o
reto tem mais terminações nervosas que a vagina – elas atingem orgasmos mais
intensos ou têm sensações emocionais mais completas quando penetradas por trás.
O ato envolve alguns cuidados do parceiro, geralmente implica em algum tipo de
dor para elas, mas, ainda assim, ou por isso mesmo, elas curtem. Por fetiche,
por doação, por anatomia – quem saberá?
Hoje em dia, com a difusão de um
certo feminismo rasteiro, existe preconceito em relação a mulheres que gostam
de sexo anal. Uma moça que eu conheço foi discutir as possíveis consequências
da penetração anal com a sua ginecologista e ouviu um sermão. “Você não precisa
se submeter a isso”, disse a médica. “Eu não me submeto. Eu gosto”, respondeu a
moça. “Mas penetração anal machuca, não é para gostar”, retrucou a médica. A
moça, que é boa de briga, mas já se sentia um pouco humilhada, encerrou a
conversa sugerindo à médica que a anatomia “e a cabeça” delas eram diferentes.
Talvez fosse o caso de mandar a médica moralista tomar naquele lugar.
No fundo tudo se resume a
anatomia e cabeça.
Algumas mulheres não têm a
anatomia necessária. Gostam de sexo, transam com desenvoltura e têm prazer em
experimentar novidades. Mas, por mais que tentem, a penetração anal resulta
para elas num ato triste e doloroso, que leva à beira do mal estar e não do
êxtase. Nessas circunstâncias, o parceiro precisa abrir mão e entender que só
há prazer quando dois estão curtindo. Mesmo porque, em alguns casos o problema
anatômico é dele. Entre as vantagens de ser bem dotado não se inclui a de achar
parceiras ansiosas para o sexo anal. Esse é um terreno em que os menores têm
mais chance.
A questão dos sentimentos – o que
passa pela cabeça das mulheres – é ainda mais complicada. No mar revolto e
impenetrável de onde emerge o prazer não há respostas claras. Li há tempo sobre
uma mulher que se excitava intensamente só de ouvir uma voz masculina que
viesse por trás dela – esse era o preâmbulo suficiente para uma perfeita relação
anal. Outras mulheres, igualmente saudáveis, não podem nem ouvir falar de dar o
cu. A simples menção do ato lhes desperta repulsa e temor. Quem está certa e
quem está errada? Ninguém.
Houve um tempo em que a
dificuldade das mulheres em se deixar penetrar dessa forma era considerada um
defeito. Fulana é ruim de cama, nem gosta de sexo anal, os homens diziam. Os
mesmos homens que diante de um delicado dedo no seu ânus seriam capazes de
reagir aos bofetões. Acho que esse tempo está acabando, porém. Continuamos,
como uma grande nação emergente, obcecados pelo cu, mas aos poucos percebemos
que isso pode ser apenas uma metáfora. Se a sua fêmea relutante não tiver medo
de ser violada a cada noite, se ela souber que tudo vai ficar no terreno da
fantasia, talvez ela aceite brincar e falar sobre o assunto. A imaginação não
tem esfíncter e pode ser muito excitante. Por ela passam, sem dor, coisas que
na vida carnal fariam chorar e desistir.
Ivan Martins
Revista Època