Um poema de Mario Benedetti
celebra o amor que não se esgota em festas
Outro dia, em circunstâncias
suaves e domésticas, lembrei de um poema do Mario Benedetti que costumava me
comover até os ossos. Chama-se Hagamos un trato - Façamos um trato, em
português – e fala dos sentimentos de um homem por uma militante política, que ele
chama de compañera.
Em linguagem simples e direta, o
poema diz, essencialmente, que ela pode contar com ele “não até dois ou até
dez”, mas contar com ele, em qualquer circunstância. É um poema de amor que
expressa um compromisso político. Ou talvez seja um poema épico suavizado por
um toque de amor. Não sei. Vocês leiam e me digam.
Mas é evidente, para mim, que
qualquer que tenham sido as intenções do Benedetti, seu poema resume uma
verdade essencial: afeto é compromisso. Os problemas do outro passam a ser
parte dos meus problemas, minhas dores são em alguma medida as dores dele. Eu
cuido dele e ele cuida de mim. Não deixei de ser eu, ele tampouco deixou de ser
ele, mas há um projeto que nos vincula e nos torna responsáveis um pelo outro.
Voluntariamente. Talvez temporariamente. Mas, enquanto estivemos ligados, será
assim.
Se isso parece consistir um
fardo, não é. Dividir é bom. Cuidar também é bom. Andamos tão acostumados a
pensar de forma egoísta que a ideia de ser responsável pelo outro nos apavora.
Temos medo também de depender da atenção e dos cuidados alheios. Mas tem sido
assim por alguns milênios e acho bom que continue. Somos indivíduos,
inescapavelmente, mas algo em nós anseia por ligar-se e partilhar de uma forma
que não seja superficial ou declaradamente provisória. Quando isso acontece,
nos sentimos parte de algo maior que o mercado ou as redes sociais. E há um
profundo conforto nisso.
Talvez essa seja o sentido atual
do “conte comigo” de Benedetti. Ele expressa uma forma de amor que não está na
moda. É algo que se manifesta não apenas como partilha de prazer e hedonismo,
mas como potencial de sacrifício. O poema nos lembra que não estamos nessa
apenas pelo riso e pela noite inesquecível. Às vezes será inevitável sofrer,
fazer coisas chatas, deixar de lado vontades e interesses imediatos. Às vezes
será necessário abrir mão. Seremos capazes? Espero que sim.
Quando li Hagamos un trato pela
primeira vez, por volta de 1995, ele me pareceu uma promessa de amor em meio à
guerra. Benedetti, afinal, era um homem de esquerda. Fora exilado pela ditadura
militar em seu país, o Uruguai, e sempre voltara seu arsenal de palavras contra
ela. Hoje, com outros olhos, o poema me sugere outros sentimentos, que vão além
do contexto político.
A palavra compañera, que abre o
primeiro verso, tem, para mim, um significado menos militante do que afetivo.
Companheira é quem ama, quem fica, quem faz parte. Não se aplica a meteoros
cintilantes.
O poema, que antes me parecia tão
somente romântico, hoje me comove por sua austeridade. Evoca uma promessa de
fidelidade que vai além da exclusividade sexual ou sentimental. “Conta comigo”
sugere sentimentos e laços profundos, assim como pessoas capazes de sacrifícios
e cuidados. Não é a leveza de sentimentos ou a combustão instantânea que
estação recomenda, mas me parece aquilo que muitos querem e precisam. Senão
hoje, certamente amanhã, quando seremos um pouco melhores e mais sábios.
Ivan Martins