terça-feira, maio 27, 2014

A RENÚNCIA AO SEXO

Leio no site de ÉPOCA que o papa recebeu uma carta de 26 mulheres que se relacionam amorosamente com padres. Elas pedem que Francisco, que tem se mostrado um homem compreensivo, relaxe as normas da igreja e permita que eles se casem. “Nós amamos esses homens e eles nos amam. Não se pode romper um vínculo tão forte e formoso”, diz a carta.


Ainda que eu ache o gesto das mulheres bonito, sinto no ar, em torno desse caso, o cheiro das tristezas irremediáveis. Estão em oposição o amor de seres humanos perecíveis e a teimosia de uma instituição de dois mil anos, que, ao longo dos séculos, tem extraído energia do ato de resistir ao movimento da história. É óbvio que o celibato obrigatório, adotado pela igreja no ano 305, tornou-se um anacronismo. Mas é evidente, também, que a igreja não liga. Ela faz o que julga correto, e quem não gostar que se afaste. Tem sido assim desde os tempos em que os homens andavam de bata e sandálias.


Lembro, quando menino, de nutrir sentimentos muito fortes a respeito desse assunto. Achava um absurdo que alguém renunciasse ao sexo e ao amor por causa da religião. Estava, provavelmente, influenciado pela leitura de O crime do padre Amaro, romance do Eça de Queirós em que um jovem padre e uma garota do interior de Portugal se apaixonam com trágicas consequências. Quem não leu, leia. Ainda é uma porrada, 140 anos depois de ter sido escrito. Também contribuía para o meu ponto de vista a influência de meu avô paterno, seu Benedito, que era batista e muito desconfiado de tudo que dizia respeito aos católicos. Ele me dizia que os pastores da sua igreja, por se casarem e terem vida normal de família, compreendiam melhor a realidade do seu rebanho. Eu concordava. Hoje, vejo essa questão de outra maneira.


Padres não são psicólogos de família ou conselheiros matrimoniais. Eles não têm mais a função de orientar os fiéis nas questões práticas da vida. Não falta quem faça isso no mundo moderno. O que distingue o sacerdote é ser uma pessoa dedicada à experiência espiritual e ética da sua religião. Ele é um sujeito voltado à relação com seu deus. Se para isso achar necessário viver de forma diferente dos outros homens, abrindo mão do sexo e do matrimônio, que seja. Eu não faria essa escolha, mas ela não me escandaliza. Nem me espanta.


Acho que por trás da condenação moderna do celibato existe uma visão ingênua e exagerada da sexualidade. Meio adolescente, na verdade. As pessoas imaginam os padres como criaturas torturadas, que se contorcem de desejo dentro da batina ou rezam de joelhos 24 horas por dia para resistir às tentações. Afinal, se o sexo é um instinto indomável, incontrolável, irrefreável, como alguém pode viver sem ele e não mergulhar na hipocrisia e no desespero? Pois eu discordo. Imagino que os padres que não são criminosos pedófilos – a larga maioria, pelo que eu saiba - põem de lado a sexualidade deles com relativa facilidade, em nome de coisas que acham importantes. Como nós fazemos o tempo inteiro, na verdade.

Deixamos de fazer sexo porque estamos totalmente voltados ao trabalho ou porque temos algum problema grave. Deixamos de transar por longos períodos porque estamos tristes ou confusos, e, nesses estados, é difícil chegar perto de outra pessoa. Às vezes, abrimos mão do sexo por meses e até anos, porque a pessoa que amamos está longe. Ou então recusamos sexo com uma terceira pessoa, ainda que ela nos pareça atraente, porque estamos casados, ou namorando, ou meramente apaixonados, e decidimos ser fiéis. Frequentemente, declinamos do sexo, ou nos esquecemos dele, pela simples razão de que não temos vontade. Acontece o tempo todo, embora a gente não diga isso por aí. Pega mal. Vivemos numa sociedade tão erotizada que a falta de libido (ou a decisão de ignorar a libido) não é socialmente bem vista. Melhor fingir de fauno que passar por broxa, né?


Tal como eu vejo, o jovem que aceita a condição do celibato para tornar-se padre é um romântico. Ele acredita que sentimentos poderosos como a fé, sua missão sacerdotal ou o compromisso com os necessitados são mais importantes do que o desejo. É um tremendo idealismo. Há beleza nesse tipo de renúncia, como em qualquer outra. Nós é que nos tornamos muito cínicos ou muito superficiais para entender isso. Eu acho.


O caso dos padres casados ou publicamente apaixonados, cujas mulheres agora escrevem ao papa, merece ser visto pelo prisma dos sentimentos. Eles não sofrem de urgência incontrolável por sexo. Vivem a descoberta do amor, que é outra experiência emocional. Em algum momento, permitiram que o desejo ocasional e inevitável por uma mulher virasse algo maior, transformador da sua consciência. Também ao amor se pode resistir em nome do compromisso com a igreja, (ou qualquer outro compromisso) mas deve ser muito mais difícil. Amar, sentir-se correspondido e ignorar tal sentimento exige mais disciplina do que olhar para o outro lado diante de uma mulher atraente. Deve doer muito mais. Os padres que abandonam a igreja para casar o fazem por amor, não por luxúria. Quem não se aguenta sem sexo nem chega a ser ordenado, eu acho. Cai fora mais cedo.

O papa Francisco, que teve namorada na adolescência, já deu sinais de simpatia pelos padres casados. Uma das amigas dele em Buenos Aires, se não me trai a memória, era mulher de um bispo que teve de se afastar da igreja. O pobre sujeito morreu em conflito, por sentir-se um homem de Deus mas ser proibido de exercer sua vocação. Uma tristeza, sobretudo porque a igreja reconhece que o celibato não é uma questão de doutrina, como a Santíssima Trindade ou o caráter divino de Jesus. É o que eles chamam de disciplina, algo que poderia ser revogado sem maiores complicações teológicas. Que tal o celibato opcional? Ou se ele fosse reservado a ordens religiosas, como monges, cujos integrantes preferem viver em contemplação? Para mim, que não sou católico e nem religioso, faz sentido. Como faria se o papa, que é homem sensível, atendesse aos pedidos das mulheres dos padres e os acolhesse de novo na igreja. Um homem que vive com tanta intensidade o seu amor não deveria ser considerado inadequado para a religião. Não para a minha, pelo menos.