A gente se preocupa demais
com uma e esquece da outra, que talvez seja mais importante
Nos últimos dias, ando
apaixonado pela palavra “lealdade”. Deve ser por causa de um livro que estou
terminando, um romance sobre antigos amigos e amantes que voltam a se encontrar
e precisavam acertar suas diferenças. Eles já não se gostam, mas confiam um no
outro. Eles deixaram de se amar, mas ainda se protegem mutuamente. Isso é
lealdade, em uma de suas formas mais bonitas. Lealdade ao que fomos e sentimos.
Ao ler o romance, me ocorreu
que amar é fácil. Tão fácil que pode ser inevitável. A gente ama quem não
merece, ama quem não quer nosso amor, ama a despeito de nós mesmos. Tem a ver
com hormônios, aparência e sensações que não somos capazes de controlar. A
lealdade não. Ela não é espontânea e nem barata. Resulta de uma decisão
consciente e pode custar caro. Ela é uma forma de nobreza e tem a ver com
sacrifício. Não é uma obrigação, é uma escolha que mistura, necessariamente,
ideias e sentimentos. Na lealdade talvez se manifeste o melhor de nós.
Antes que se crie a
confusão, diferenciemos: lealdade não é o mesmo que fidelidade, embora às vezes
elas se confundam. Ser fiel significa, basicamente não enganar sexual ou
emocionalmente o seu parceiro. É um preceito, uma regra que se cumpre ou não se
cumpre, uma espécie de obrigação. O custo da fidelidade é relativamente baixo:
você perde oportunidades românticas e sexuais. Não tem a ver, necessariamente,
com sentimentos. Você pode desprezar uma pessoa e ser fiel a ela por medo,
coerência, falta de jeito ou de oportunidade. Assim como pode amar alguém
perdidamente e ser infiel. Acontece todos os dias.
Lealdade é outra coisa. Ela
vai mais fundo que a mera fidelidade. Supõe compromisso, conexão, cuidado.
Implica entender o outro e respeitá-lo no que é essencial para ele - e pode não
ser o sexo. Às vezes o outro precisa de cumplicidade intelectual, apoio
prático, simples carinho. Outras vezes, a lealdade requer sacrifícios maiores.
A primeira vez que deparei
com a lealdade no cinema foi num filme popular de 1974, Terremoto. No final do
drama-catástrofe, o personagem principal – um cinquentão rico, heroico e boa
pinta – tem de escolher entre tentar salvar a mulher com quem vivia desde a
juventude, com risco da sua própria vida, ou safar-se do desastre com a jovem
amante. Ele escolhe salvar a velha companheira e morre com ela. Parece apenas
um dramalhão exagerado, mas desde Shakespeare o drama ocidental está repleto de
escolhas desse tipo. É assim que nos metem conceitos elevados na cabeça. Vi
esse filme com 16 e 17 anos e nunca mais deixei de pensar na lealdade em termos
drásticos.
A lealdade está amparada em
valores, não apenas em sentimentos. É fácil cuidar de alguém quando se está
apaixonado. Mais fácil que respirar, na verdade. Mas o que se faz quando os
sentimentos desaparecem – somem com eles todas as responsabilidades em relação
ao outro? Sim, ao menos que as pessoas sejam movidas por algo mais que a mera
atração. Se não partilham nada além do desejo, nada resta depois do romance.
Mas, se houver cumplicidades maiores, então se manifesta a lealdade. Ela dura
mais do que os sentimentos eróticos porque se estende além deles.
O romantismo, embora a gente
não o veja sempre assim, é uma forma exacerbada de egoísmo. Meu amor, minha
paixão, minha vida. Minha família, inclusive. Tem a ver com desejo, posse e
exclusividade, que tornam a infidelidade insuportável, a perda intolerável. As
pessoas matam por isso todos os dias. Porque amam. É um sentimento que não
exige elevação moral e pode colocar à mostra o pior de nós mesmos, embora
pareça apenas lindo.
Minha impressão é que o
mundo anda precisado de lealdade. Estamos obcecados pela ideia da fidelidade
porque a infidelidade nos machuca. Sofremos exacerbadamente porque o mundo, o nosso
mundo, não contém nada além de nós mesmos, com nossos sentimentos e
necessidades. Quando algo falha em nossa intimidade, desabamos.
Talvez devêssemos pensar de
forma mais generosa. Talvez precisemos nos apaixonar por ideias, nos ligar por
compromissos, cultivar sonhos e aspirações que estejam além dos nossos
interesses pessoais. Correr riscos maiores que o de ser traído ou demitido. O
idealismo, que tem sido uma força de mudança na conduta humana, precisa ser
resgatado. Não apenas para salvar o planeta e a sociedade, mas para nos dar,
pessoalmente, alguma forma de esperança. A fidelidade nos leva até a esquina. A
lealdade talvez nos conduza mais longe, bem mais longe.