Essas duas últimas semanas me deixaram deprimida e com um
intenso sentimento de impotência diante de casos de assassinatos cometidos por
policiais e por bandidos que expressam inequivocamente apenas a vontade e o
prazer de matar. Impressionou-me a manifestação clara do poder de matar, do
exercício desse poder diante de um outro totalmente frágil, sem condições de
defesa e apavorado. Emerge de assassinatos ocorridos neste mês de julho, como
os de Tomasso Loto, Ricardo Prudente, Bruno Vicente Gouveia Viana, Márcia
Calixto Carnetti e seu filho de 5 anos, o prazer explícito de exercer o poder
de fazer sofrer e dispor da vida como realização absoluta de um gozo humano.
Uma frase de Terêncio sempre me inquietou: "nada do humano me é estranho”.
Mas, isso não explica o que estamos vivendo no Brasil.
A violência social e cultural que estamos testemunhando não
é nem uma questão cósmica nem uma questão individual. Estamos diante de um
fenômeno historicamente construído, cujo entendimento deve ser buscado no
processo de formação da sociedade brasileira articulado com a sociedade
individualista e consumista atual. Esse entendimento deve ser abordado pelo
pensamento, pelo sentimento e pela ação, como propõe Ricoeur ao refletir sobre
o mal. Diante do sentimento de incapacidade de entender e conviver com tanta
violência e maldade me sinto desafiada a buscar explicações. É o que me resta,
pois não acredito que a violência seja uma qualidade humana, mas sim um
potencial humano que se estrutura e se manifesta em condições sociais bem
determinadas, podendo se tornar maldade, perversidade. Mas também não se pode
atribuir todo o crédito a essas condições sociais e retirar dos sujeitos a sua
responsabilidade, pois envolve também um aspecto ético e moral – é uma problemática
da liberdade.
Todas as vítimas publicizadas são pessoas comuns, jovens,
trabalhadores/as, sonhadores/as, que sofreram e perderam suas vidas num
instante fugaz, resultante de algo que escapa ao nosso controle e compreensão.
Os noticiários sobre estes casos estão disseminando um clima de intenso medo
social e impotência, mais do que indignação. Mas, entre os acontecimentos, os
seus significados e os noticiários existe uma engrenagem que nos escapa. A
verdadedos fatos pode conter algo de capcioso.
No Brasil, segundo Vera Malaguti, a polícia sempre inspirou
segurança às elites e terror na população. Nos dias atuais ela está também
aterrorizando as elites por seu fracasso institucional. O feitiço virou contra
o feiticeiro? Ou, a lógica do terror e do medo está consumada e generalizada?
E, embora atinja também a elite, é um "mal necessário” para a continuidade
de um sistema desigual, excludente e anticidadão? A estratégia histórica de
usar o medo como mecanismo de controle social é irreversível? Em outras
palavras, a violência social que no Brasil foi construída e representada de
modo a disseminar o medo e a criminalização dos pobres para justificar
políticas autoritárias de controle social, como nos faz ver Malaguti, pode ser
desconstruída? Um elemento estruturante do imaginário brasileiro é construir os
dominados, hoje os pobres, os habitantes das periferias, sobretudo os mais
jovens, como perigosos, brutos, sem direitos e sem condições de viver
civicamente.
A ideologia da criminalização da pobreza e da disseminação
do medo se internalizou não só nas instituições como nos sujeitos sociais,
inclusive nos próprios pobres e nos criminosos. A violência sempre teve e
continua tendo eficácia simbólica para medidas autoritárias, funcionando como
estrutura de troca entre classes e entre indivíduos. A população pobre
brasileira tem sido deslocada na última década, de sua condição de absoluta
exclusão passando a se reconhecer como um sujeito cidadão, com direitos,
deveres, compromissos, vida própria e desejos. Mas, contraditoriamente, essa
redução da desigualdade social não se expressa nos dados como redução da
violência urbana. Isso rompe o elo pobreza-criminalidade, ou não?
Como entender essa aparente contradição de reprodução e até
ampliação da violência numa conjuntura de redução da pobreza? Tudo isso mostra
que o olhar sobre a conflitividade social é feito por uma ótica criminal,
penal, dirigida a grupos específicos da população. A violência produz o medo,
que produz a insegurança, que promove um lucro imenso para a indústria de
segurança pública e particular, desde tecnologias de vigilância, produtos
bélicos, empresas de segurança, prisões, forças policiais, além de difundir um
imaginário social autoritário e reacionário e temeroso da liberdade e da felicidade.
A criminalização atualmente não atinge apenas os pobres,
toda a sociedade é criminalizada e as forças de segurança se investem do poder
de predizer, prejulgar, ignorando a condição de cidadania, quando esta sim, é
que deveria ser a norteadora das suas condutas. Assim, atiram e matam antes de
perguntar. A violência e o medo como formas de comunicação definidoras de
relações sociais transferem-se para as relações pessoais reproduzindo a
brutalidade, a truculência como forma de resolver conflitos: criminosos matam
pessoas que roubam e também as que não conseguem roubar, matam-se em disputas
de território ou desentendimentos; homens matam mulheres e homossexuais e assim
diversos outros sujeitos sociais matam e violam os semelhantes ou
dessemelhantes como rotina da vida intima, amorosa, familiar e social. Vale a
pena assistir o vídeo da professora Vera Malaguti Batista no Café com
Filosofia, para entender a historicidade desse imaginário do medo, antes de
pensar em pena de morte, aumento de policiamento, mais prisões, redução de
maioridade penal... Necessário é entendermos a produção social da
criminalidade, a orientação política da segurança pública e a função social do
medo e da insegurança no Brasil. Por fim, será apenas coincidência que esta
‘escalada da violência’ e o clima de medo e insegurança sejam propagados em
período de eleições, quando tem ocorrido um avanço das forças mais democráticas
no país?
Para espantar o medo, cantemos com Catedral: "Não me
diga que o mundo anda mal hoje eu nem quero ler o jornal”...
Maria Dolores de Brito Mota
Professora Associada da Universidade Federal do Ceará. Instituto de Cultura e Arte
Fonte: Adital