Ficar sem palavras é um martírio
para quem se diz comunicador. Mas é assim que tenho vivido nestes mais recentes
dias diante da maior certeza da vida. Não é medo da verdade das verdades; é
algo como uma melancolia sofrida, um vazio que invade as emoções, provavelmente
a alma; uma ausência que não sei explicar exatamente do quê. Tomado de uma
profunda tristeza, foi assim que me senti e ainda sinto com a passagem do
Betinho.
Eriberto Santos para o grande
público, Eriberto para os mais chegados e Betinho para que os que
definitivamente sucumbiram diante daqueles gestos sempre afáveis, do eterno
rosto de criança, daquele sorriso que somente a infância nos premia e das
sempre encorajadoras palavras. Betinho,
um carinho em forma de pessoa.
Minha mais antiga lembrança deste
marco do radiojornalismo em Santarém vem de um final de tarde, no
“pau-da-garça”, o muro da casa onde estava instalada a ZYR-9, a emblemática
Rádio Clube de Santarém, num comentário dele sobre o funcionamento dos novos
estúdios da Rádio Educadora na Travessa dos Mártires. A expressão,
provavelmente, de um desejo. Passamos a ter um contato mais permanente quando
comecei o período de treinamento na Educadora, na primeira quinzena de agosto
de 1970. Eriberto Santos foi o escalado para me preparar para a locução. Foi um
impecável mestre, não apenas na orientação da leitura dos textos, dos anúncios
das músicas, mas, também, na apresentação aos colegas de trabalho e no
detalhamento do perfil da poderosa rádio da diocese de Santarém.
Mais de uma década fazendo rádio
juntos e mais a atenção que sempre dediquei aos caminhos da comunicação em
Santarém me permitiram estar em permanente contato com as atividades do
Betinho. Dá umas boas laudas de história sobre um dos integrantes do período de
ouro do rádio na Pérola do Tapajós. Como este não é o espaço adequado, registro
apenas dois fatos: o primeiro diz respeito à capacidade de produção do redator
do “Plantão de Notícias” – nome de então do boletim noticioso de cinco minutos
de duração, que era veiculado de hora em hora. A primeira edição ia ao ar às 8h
e a última às 17h. 50 minutos diários de notícias de segunda a sexta-feira e 45
minutos aos sábados. Além desses boletins havia o “Jornal da Noite”, o destaque
maior do jornalismo de rádio em Santarém, equivalente ao Jornal Nacional da TV.
Este programa com a duração de 30 minutos era irradiado às 9h da noite, de
segunda à sexta-feira. Em meados do segundo semestre de 1979 foi acrescentado à
grade de programação o Jornal da Manhã, com duração de meia hora, a partir das
7h. Havia pelo menos duas ou três pessoas compondo a equipe de radiojornalismo,
mas a responsabilidade e a palavra final eram do Betinho.
O que deve ser levado em
consideração nesses expressivos minutos que a Rádio Rural dedicava ao
jornalismo não é a quantidade de tempo, mas a qualidade da notícia. Ouvir a
Rádio Rural naqueles dias era conhecer a vida da cidade em todos os seus
ângulos, a despeito da ditadura militar que dificultava, intimidava e cerceava
a atividade jornalística. E se por um lado, a questão política era um grande
risco, na outra face havia a dificuldade de material, um entrave que exigia
disposição e coragem para executar cada tarefa. A equipe não contava com
agência de notícias, teletipos, telefones, carro, moto. Não havia TV,
computador, internet e nem celular. A turma da notícia dispunha apenas de um
excelente receptor para sintonizar as rádios do sul do País em Onda Curta e uma
máquina americana da 2ª Guerra mundial, sem os acentos gráficos da língua
portuguesa – a modernidade veio com uma Remington novinha em folha. Uma
gravação externa era feita com um gravador de fitas K-7, quase do tamanho de
uma mochila. Foram desafios que solidificaram e dignificaram o Betinho como o
homem do radiojornalismo no Oeste do Pará.
O outro ponto que destaco se
refere à preocupação do Betinho com a qualidade da informação. Em 10 edições
diárias do Plantão de Notícias somente havia repetição se a relevância do fato
assim exigisse. Uma precipitação que levasse a divulgar uma notícia incompleta,
uma nota sobre algo que na verdade não aconteceu ou uma narração equivocada
sempre consumiram o destacado radialista. Por sinal, estas foram questões que
levantamos na última vez que conversamos por telefone, ele em Santarém e eu em
Belém.
No dia 27 de setembro de 1972 Betinho estava em Altamira para cobrir a inauguração da rodovia Transamazônica, que seria feita pelo presidente Garrastazu Médice. Além do discurso de Médice, uma castanheira centenária foi derrubada para marcar o evento. Betinho gravou o ronco dos tratores e motosserra botando no chão o majestoso exemplar da hoje protegida espécie amazônica. Ao exibir a reportagem, da sonoplastia constou o ronco das máquinas contra a árvore. Betinho foi, digamos, gozado pela exibição do som. Ele nunca se perdoou por aquilo que ele passou a considerar uma incorreção na sua atividade. Fiz com que visse, então, que não havia erro algum na peça, pelo contrário. O rádio é som, e lá estava ele denunciando o início da devastação do coração da Amazônia. Que poderia ele fazer diante do fato de não poder gravar depoimentos e nem criticar os atos do ditador e seus auxiliares além de registrar o real som do desmatamento? Não era para consolar, é meu entendimento. Além do “Pau do Presidente”, o tronco da castanheira que ainda existe como marco histórico em Altamira, ficou a lembrança da narração feita pelo incansável repórter de um fato que afetou definitivamente a vida do povo da floresta.
Esse memorável tempo que juntos passamos na Rádio Rural de Santarém gerou muitas histórias, algumas engraçadas, mas, acima de tudo, histórias da formação de um grupo que começou muito jovem a sua atividade neste formidável veículo de comunicação que é o rádio. Fomos arrastados pelo exemplo de um corpo diretivo que tinha como missão a educação no coração da região Amazônica. Isto incluía a equipe da rádio. Ninguém poderia ficar imune às presenças de Dom Tiago Ryan, Frei Juvenal, Professora Francisca do Rosário, Haroldo Sena, Manuel Dutra – para ficar somente nesses eméritos mestres. Com esta equipe foi possível exercitar com liberdade a nossa condição criativa no rádio e aprender a executá-la com responsabilidade, com respeito ao ouvinte e à comunidade e com ética. Esses princípios foram se impregnando em nossas vidas e ficaram para sempre. A partir destes inesquecíveis dias estávamos preparados para exercer o nosso papel na sociedade, assumindo qualquer profissão que escolhêssemos e a formar uma família. Não éramos apenas colegas de trabalho exercendo uma atividade em uma empresa de comunicação, mas cidadãos que estavam sendo preparados para a vida. Isso nos fez uma família. E, agora, depois dos anos passados, chegamos aos dias inexoráveis em que começam a subsistir apenas as lembranças, boas lembranças.
Não necessitamos olhar para trás para sentir a presença destes irmãos, pois a importância deles para cada um de nós estará sempre à nossa frente, como um espelho. Alguns partiram muito cedo, mas é como se nunca tivessem nos abandonado. Chegará o nosso momento também, e iremos em paz, sabendo que partilhamos a vida com as melhores vidas que poderíamos escolher para conviver. Assim foi e assim será o nosso Betinho.
* Lindo e emocionante texto.
Parabéns Santino!!
Parabéns Santino!!