"O que as multidões da rua estão reclamando é:
desenvolvimento em primeiro lugar e a seu serviço o crescimento (PIB).
Crescimento é material. Desenvolvimento é humano", escreve Leonardo Boff,
teólogo, filósofo e escritor.
Segundo ele, "as ruas estão gritando por um Brasil de
gente e não de negócios e de negociatas; por uma sociedade menos malvada devido
às desigualdades gritantes; por relações sociais transparentes e menos escusas
que escondem a praga da corrupção; por uma democracia onde o povo é chamado a
discutir e a decidir junto com seus representantes o que é melhor para o
país".
Eis o artigo.
Estimo que parte das razões que levaram multidões às ruas no
mês de junho tem sua origem nos equívocos conceituais presentes nas políticas
públicas do governo do PT. Não conseguindo se desvenciliar das amarras do
sistema neoliberal imperante no mundo e internalizado, sob pressão, em nosso
pais, os governos do PT tiveram que conceder imensos benefícios aos rentistas
nacionais para sustentar a política econômica e ainda realizar alguma
distribuição de renda, via políticas sociais, aos milhões de filhos da pobreza.
O Atlas da exclusão social e os ricos no Brasil (Cortez,
2004), embora seja de alguns anos atrás, mantém sua validade, como o mostrou o
pesquisador Marcio Pochmann (O pais dos desiguais. Le Monde Diplomatique,
2007). Passando por todos os ciclos econômicos, o nível de concentração de
riqueza, até a financeirização atual, se manteve praticamente inalterado. São 5
mil famílias extensas que detêm 45% da renda e da riqueza nacionais. São elas,
via bancos, que emprestam ao governo;
segundo os dados de 2013, recebem anualmente do governo 110 bilhões de reais em
juros. Para os projetos sociais (Bolsa Família e outros) são destinados apenas
cerca de 50 bilhões. São os restos para o que é considerado "o
resto".
Em razão desta perversa distribuição de renda, comparecemos
como um dos países mais desiguais do mundo. Vale dizer, como um dos mais
injustos, o que torna nossa democracia extremamente frágil e quase farsesca. O
que sustenta a democracia é a igualdade, a equidade e a desmontagem dos
privilégios.
No Brasil se fez até agora apenas distribuição desigual de
renda, mesmo nos governos do PT. Quer dizer, não se mexeu na estrutura da
concentração da renda. O que precisamos urgentemente, se quisermos mudar a face
social do Brasil, é introduzir uma redistribuição que altere os mecanismos
de apropriação de renda. Concretamente
significa: tirar de quem tem demais e
repassar para quem tem de menos. Ora, isso nunca foi feito. Os detentores do
ter, do poder, do saber e da comunicação social conseguiram sempre impedir esta
revolução básica, sem a qual manteremos indefinidamente vastas porções da
população à margem das conquistas modernas. O sistema político acaba servindo a
seus interesses. Por isso, em seu tempo, repetia com frequência Darcy Ribeiro
que nós temos uma das elites mais opulentas, antissociais e conservadoras do
mundo.
Os grandes projetos governamentais destinam porções
significativas do orçamento para os projetos que as beneficiam e as enriquecem
ainda mais: estradas, hidrelétricas, portos, aeroportos, incentivos fiscais,
empréstimos com juros irrisórios do BNDES. A isso se chama crescimento
econômico, medido pelo PIB, que deve se equacionar com a inflação, com as taxas
de juros e o câmbio. Priviligia-se o agronegócio exportador que traz dólares à
agroecologia, à economia familiar e solidária, que produzem 60% daquilo que
comemos.
O que as multidões da rua estão reclamando é:
desenvolvimento em primeiro lugar e a seu serviço o crescimento (PIB).
Crescimento é material. Desenvolvimento é humano. Signfica mais educação, mais
hospitais de qualidade, mais saneamento básico, melhor transporte coletivo,
mais segurança, mais acesso à cultura e ao lazer. Em outras palavras: mais
condições de viver minimamente feliz, como humanos e cidadãos e não como meros
consumidores passivos de bens postos no mercado. Em vez de grandes estádios, cujas entradas
aos jogos são em grande parte proibitivas para o povo, mais hospitais, mais
escolas, mais centros técnicos, mais cultura, mais inserção no mundo digital da
comunicação.
O crescimento deve ser orientado para o desenvolvimento humano e social. Se não se alinhar a esta
lógica, o governo se vê condenado a ser mais o gestor dos negócios do que o
cuidador da vida de seu povo, das condições de sua alegria de viver e de sua
admirada criatividade cultural.
As ruas estão gritando por um Brasil de gente e não de
negócios e de negociatas; por uma sociedade menos malvada devido às
desigualdades gritantes; por relações sociais transparentes e menos escusas que
escondem a praga da corrupção; por uma democracia em que o povo é chamado a
discutir e a decidir junto com seus representantes o que é melhor para o país.
Os gritos são por humanidade, por dignidade, por respeito ao
tempo de vida das pessoas para que não seja gasto em horas perdidas nos
péssimos transportes coletivos, mas liberado para o convívio com a família ou
para o lazer. Parecem dizer: "recusamos ser animais famintos que gritam
por pão; somos humanos, portadores de espírito e de cordialidade que gritamos
por beleza; só unindo pão com beleza viveremos em paz, sem violência, com humor
e sentido lúdico e encantado da vida".
O governo precisa dar esta virada.
Por Leonardo Boff