Ou seria apenas um quarteirão vazio, varrido pelo vento?
Quem gosta de viajar talvez já tenha pensado nisso: as
pessoas são como cidades. Quando nos envolvemos com elas, quando passamos a conhecê-las
intimamente, é o equivalente a caminhar sem mapa por ruas nas quais nunca
pisamos, por bairros que não sabíamos existir. O prazer desse passeio inaugural
é irreproduzível. Você poderá voltar às mesmas ruas muitas vezes, deve fazê-lo
na verdade, mas nenhum outro momento terá a surpresa daqueles instantes
iniciais, quando os nossos olhos são puros e o nosso coração é virgem outra
vez. Pode-se amar uma cidade a vida inteira, mas é impossível descobri-la duas
vezes.
A imagem das pessoas como cidades me ocorreu na semana
passada, enquanto conversava com uma amiga que está redescobrindo o mundo.
Falávamos de novos relacionamentos, sobre a luz fresca que eles despejam sobre
a nossa vida, de como nos despertam a totalidade dos sentidos. Então surgiu a ideia
de que as pessoas são como cidades ensolaradas e coloridas – às vezes sombrias
e chuvosas - que vão sendo exploradas à medida que as conhecemos. Ou à medida
que consintam em ser devassadas.
Se eu olhar para o meu passado – e você para o seu – descobriremos
ter passado por diferentes geografias humanas.
Havia uma moça, aos 19 anos, que era uma tempestade em
movimento. Enquanto estivemos juntos, eu descobria, a cada passo, ruas sombrias
que me assustavam, placas com direções contraditórias, terrenos abandonados e
hostis. Na cidade que era ela, quanto mais eu andava mais perdido me sentia.
Consegui espantar o medo do que via em troca do prazer de estar ali, mas isso
não foi suficiente. Antes que eu tivesse tempo de fazer um mapa, de ensaiar a
mais elementar das compreensões, ela se foi. Só fui revê-la anos depois, ainda
impenetrável, ainda perturbadora.
Com o passar do tempo, eu, que me julgava um amante da
sombra, descobri os prazeres da luz – e o fascínio daquilo que é, ao mesmo
tempo, transparente e intraduzível.
Uma mulher de imensa delicadeza entrou na minha vida e a
encheu de sol. Mais que uma cidade, ela me pareceu um país inteiro. Andei tanto
por suas ruas, me perdi tanto descobrindo, que não notei que havia ficado
sozinho. Tive de deixar a cidade que eu amava e aquilo foi como um exílio.
Passaram-se anos antes que eu encontrasse outra pessoa tão marcante, outra
cidade tão nova e diferente da minha, outro lugar de onde não queria me
afastar. Explorei essa nova cidade com a urgência de quem nunca vira nada
semelhante, arfando e rindo, tomado pela alegria e o colorido do que ia
percebendo. Nunca me senti tão acolhido, nunca fui tão feliz. Mais que uma
cidade, havia uma festa ao meu redor. Quando, ao final, as luzes se apagaram,
eu havia me tornado outro homem – suavizado pela experiência tranquila de amor,
capaz de entender, finalmente, o que me cabe e o que me completa.
Como sabem os amantes das viagens, uma cidade leva a outra.
Explorar é explorar-se. Conhecer é conhecer-se. Cada experiência nos prepara
para a outra. Cada mudança antecipa a outra que está por vir. Assim, aos
trancos, cheguei à cidade onde me encontro. Não a havia antecipado. Quando a
vi, me pareceu tão linda que não me cabia, mas fui ficando, como um usurpador
ou um clandestino. Tornou-se o meu lugar. Às vezes descubro uma esquina nova,
de vez em quando me perco na beira do Rio, fico. Gosto do que conheço, sinto
que há muito mais a descobrir. Percebo, meio encantado, que esta cidade cresce
à frente dos meus passos, ao meu redor, comigo. Há nela algo de inesgotável que
reage a mim. É a minha cidade. Cuido dela, que me faz feliz.
Minha amiga me faz notar, porém, que nem todas as pessoas
são cidades. Algumas serão vastos continentes gelados. Outras, apenas becos sem
saída.
Posto diante dessa imagem poderosa, me pergunto quem sou eu.
Um quarteirão deserto e árido? Uma praça com bancos coloridos? Uma cidadezinha
preguiçosa plantada num vale? Uma metrópole à beira mar, varrida pelo vento e
pela sirene dos navios? Eu não sei. Não sabemos, na verdade. E nem nos cabe
dizer. Na verdade, temos de ser descobertos, nomeados e mapeados. É pelo olhar
amoroso do outro que nos revelamos. É no olhar do outro que nos re-conhecemos.
Como uma cidade. Um país. Um mundo que o outro queira habitar – e transformar
em sua casa.
IVAN MARTINS
Revista Época