Há uma tristeza em nós que
precisa ser respeitada
Há uma tristeza em nós que
sobrevive às maiores alegrias. Todo mundo sabe disso. Freud, Shakespeare, Paulo
Leminski. Um dia, inevitavelmente, os neurocientistas irão localizar, com ajuda
de ressonância magnética, o vão do cérebro que permanece cinza mesmo no auge da
euforia e no ápice da paixão. Então saberemos, com rigor científico, o que
sempre soubemos: que a sombra e a melancolia são partes inseparáveis de nós.
Ter isso claro ajuda a entender o
que nos passa. Ajuda a compreender nossos humores estranhos. Ajuda a entender
uma tarde sombria no auge do verão. Ajuda a aceitar uma noite em claro, o
silêncio no meio da festa, a vontade irresistível de chorar ouvindo uma canção
no rádio. Também somos assim.
Às vezes temos sonhos de abandono
em momentos serenos da vida. Neles, a pessoa que a gente ama vai embora, nos
vira as costas, torna-se repentina e irremediavelmente inacessível. A gente
acorda de um sonho desses com a alma turva, tomado de desconfiança. Olha cheio
de ressentimento para a outra, adormecida ali ao lado, e se pergunta: por quê?
Não acho que exista uma resposta,
mas eu tenho uma teoria.
A mim parece que a natureza nos
dotou de alarmes. De quando em quando, um deles dispara para nos lembrar,
realisticamente, que não há bem que sempre dure. É como se algo em nós dissesse
(através do sonho, da inexplicável melancolia, de um pressentimento repentino),
“Por favor, não se acostume. As relações não são eternas, a vida não é simples,
a dor é inevitável.” Algo em nós avisa que a tristeza faz parte da vida.
Muita gente não está interessada,
claro. A moda é parecer feliz e bem-sucedido. Tem mais de um rei do camarote
dando pinta por aí. Mas essa fachada social sorridente precisa ser posta de
lado na intimidade - ou a intimidade não existe. No aconchego de uma relação
verdadeira, tem de haver espaço para os nossos medos, as nossas falhas e as
inconfessáveis inseguranças. O lado B da alma humana precisa aparecer, nem que
seja no escuro. Sem ele a gente não se entende, nem entende o outro.
Isso não cabe na trama das
novelas, mas pessoas de verdade têm sonhos e dias ruins. Gente de carne e osso
frequentemente parece incompreensível. Certas manhãs, elas nos olham com tanta
tristeza que dá vontade de escrever um poema, de abraçar apertado, de segurar
pelas bochechas e dizer “Eu sei como é. Eu estou aqui”. Talvez nem adiante, mas
faz parte. Estamos nesse mundo também para nos consolar mutuamente.
Por isso acho bacana respeitar
minha tristeza e a dos outros. Ela faz parte. Nos livra da idiotia de um
sorriso permanente. Nos coloca em harmonia com um mundo nem sempre gentil.
Reflete algo de profundo e inexorável da nossa biologia. No final das contas, é
parte de nós. Como a alegria. Se não ligarmos para ela durante o dia, virá nos
visitar durante a noite, num sonho – do qual sairemos de olhos molhados e
sozinhos, até que um abraço nos resgate.