Exercitei minha verve através de
Félix. Tenho um lado irônico, por que não dizer venenoso
Sempre é assim. Entro de luto, ao
acabar de escrever uma novela. Os capítulos finais ainda estão no ar, mas já
dói. Meu imediato desejo é me internar num mosteiro trapista, com voto de
silêncio. Inclusive já verifiquei na internet: há vários no país, e a aura de
espiritualidade é tão grande que nem sequer cobram a estadia. Não sou o único:
um de meus colaboradores já marcou viagem para a Índia, onde ficará em silêncio
num retiro espiritual. Depois, pegará sozinho um trem para refazer os caminhos
de Buda. Detalhe: ele não é budista, talvez até esteja se tornando, mas isso é
coisa de alguns meses para cá. Sou mais prático. Se é para ficar em silêncio,
por que ir até a Índia, me adaptar a uma dieta à base de curry e vegetais e
sacolejar num trem em cabine para quatro? Mais fácil recorrer aos trapistas
mais próximos. É o que pretendo fazer.
Sempre trabalho de noite. Dá uma
falta, um vazio, uma tristeza tremenda agora, todas as noites, ao terminar de
assistir ao capítulo e não ter o que fazer. A não ser esperar a madrugada para
fumar meu charuto e pensar sobre... a novela! Sentirei uma falta profunda, não
nego, de Félix (Mateus Solano) e da relação com seu pai, César (Antônio
Fagundes). Quando me entrevistam, costumo dizer que gosto de todos os
personagens, porque, em alguma medida, eles refletem uma parte de mim. Até
Márcia (Elizabeth Savala), que tem um lado amoroso e outro interesseiro, tem
muito a ver com meu espírito emocional e prático ao mesmo tempo. Sem contar que
adoro hot dog! A minha relação com meu pai, João, devo dizer, não tem a ver com
a de Félix e César. Meu pai era um homem simples, mas que me apoiava
profundamente, inclusive na carreira de escritor – que ele considerava uma
loucura, mas, se eu queria, estava do meu lado. A intensidade dessa relação Félix
e César me toca profundamente, porém. E, através de Félix, exercitei minha
verve ao longo de meses. Tenho um lado irônico, por que não dizer
venenoso. Passo a vida me contendo para
não dizer, inocentemente, uma verdade horrível a alguém, simplesmente porque
costumo ser franco. (E só depois arco com os estragos dessa franqueza rude.)
Com Félix, me diverti. Pelas palavras do personagem, disse o que tenho vontade de responder em milhares
de situações. Como quando a mãe, Pilar (Suzana Vieira), disse que era loira de
nascença. Félix lembrou que provavelmente nem ela se lembrava mais da cor
original dos cabelos. Quantas vezes tive vontade de dizer o mesmo a “loiras
naturais”? Félix mostrou seu modo peculiar de ver o mundo. Quando escrevo uma
novela, livro ou peça, a partir de certo momento o personagem se torna uma
espécie de amigo, alguém com quem convivo e bato papo diariamente. Também, a
necessidade absoluta de amor de Félix me envolveu. E a rejeição do pai. Todos
nós, ao longo da vida, não sentimos falta de amor, sofremos com a rejeição?
Em outros personagens, revivi
pessoas próximas a mim. O amor de Bernarda (Nathalia Timberg) e Lutero (Ary
Fontoura) tem muito a ver com o fato de minha mãe, já viúva, idosa, ter
começado a namorar. E viveu, até a morte, uma bonita história de amor com um
vizinho de sua idade, que a acompanhou no hospital até os últimos momentos.
Escrever fez com que me reaproximasse de minha mãe, de quem sinto saudade.
Talvez por isso Amor à vida tenha tocado em temas importantes, modéstia à
parte, como a homofobia, que passou a ser discutida nos lares brasileiros.
Tenho tido muitos testemunhos pessoais, de gays que passaram a ser aceitos por
suas famílias a partir do debate sobre o tema na novela. Principalmente porque
meu foco não foi a homoafetividade em si, mas as relações estabelecidas na
família, entre pais e filhos, e o desejo de adotar ou ter um filho por
inseminação artificial.
Já escrevi a palavra “FIM”. Para
um autor, todo “FIM” é um novo recomeço. Mas preciso desse tempo de luto, para
as ideias renascerem, para me sentir vivo, inteiro novamente. E só como autor
eu consigo me sentir inteiro.
Agora, é me despedir. Adeus,
Félix! Adeus, César, Paloma, Bruno, Aline (safada!), Amarilys (safadíssima),
Niko, Eron, Gigi, Márcia – Tetê Parachoque e Paralama, AtílioGentil, Valdirene,
Palhaço, Ninho, Linda, Rafael, Ordália... nossa, tanta gente. Nós, autores e
atores, vamos nos reencontrar, com certeza. Dos personagens, nos despedimos
agora, mas tenho certeza de que, por toda a vida, um pouco de todos eles sempre
estará dentro de mim.
WALCYR CARRASCO
Fonte: Época
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