quarta-feira, maio 12, 2010

MESMO SAQUEADA, AMAZÔNIA É LUGAR-CHAVE PARA A REDIVISÃO DO TRABALHO


BELÉM, Pará – A história contemporânea da Amazônia segue dois marcos. Sem considerá-los, ninguém poderá entender o que acontece na região. O primeiro deles, por ordem cronológica, tem dois desdobramentos. Começou na segunda metade da década de 1950 do século passado, quando pela primeira vez a Amazônia foi integrada por terra ao restante do País, inicialmente através das rodovias Belém-Brasília e Brasília-Acre (seguidas de outras estradas de porte semelhante, como a Transamazônica).
Esse marco foi arrematado duas décadas depois, quando os militares, no poder pelo período mais longo de todas as suas intervenções na vida política brasileira, decidiram acelerar a ocupação desencadeada pelas estradas. O lema era categórico: “integrar para não entregar”.


Uma longa tradição de raciocínio geopolítico muito forte, sobretudo na caserna, garantia que a Amazônia era objeto, desde o início da presença européia, de uma cobiça internacional profunda, persistente e ameaçadora.


Ela só não se consumara porque o colonizador português mostrara sua valentia (além de sagacidade) na defesa (e expansão) das fronteiras amazônicas. Esse sentimento foi repassado ao nativo.

Mas essas qualidades já não eram suficientes para assegurar a soberania nacional sobre a mais extensa e rica fronteira do país. Os “espaços vazios” constituíam o ponto frágil da vigilância e da defesa da integridade territorial. Era preciso que cidadãos nacionais ocupassem esses espaços, atraídos pelas promessas de enriquecimento e intensamente apoiados pelo governo (inclusive através de colaboração financeira do erário). A Amazônia precisava deixar sua condição de reserva e passar a produzir.

Essa contingência se impôs quando de outro marco: a primeira crise do petróleo, de 1973. O mundo se redefiniu para se adaptar ao novo custo da energia. Em nenhum lugar do mundo há mais energia contida na natureza do que na Amazônia. Em seus rios caudalosos, no seu subsolo, nas suas árvores, nas suas chuvas, no seu sol. Um dos lugares-chave da nova redivisão internacional do trabalho passou a ser a Amazônia.


Exportação mineral

Ela tem duas das maiores fábricas de alumínio do planeta (e o alumínio é o bem industrial mais eletrointensivo que existe), a maior fábrica de alumina, algumas das principais plantas minerais, a quarta maior hidrelétrica da Terra. Quase todos esses bens e insumos são remetidos para o exterior. As empresas que os produzem contam com participação acionária de algumas das principais multinacionais.



A Amazônia, internacionalizada desde a sua origem (foram os espanhóis que lhe deram esse nome) e nacionalizada só recentemente, já sob o Império, nunca foi tão internacionalizada quanto agora. E nunca tão integrada à economia nacional. Ao contrário do que pensavam os militares no poder, uma coisa levou à outra, ao invés de impedi-lo.


Os estrangeiros parecem ter aprendido que é mais cômodo e mais rentável explorar as riquezas da Amazônia sob um governo local do que abrindo filial colonial da metrópole no além-mar. Os relatos sobre tentativas de intervenção estrangeira direta não resistem a um exame mais apurado.

Diogo Feijó autorizou ingleses à invasão


Diz a lenda (revestida de verdade histórica nos manuais de ocasião, muito caros aos nacionalistas) que, no século XIX, a poderosa Inglaterra só não anexou a Amazônia porque Eduardo Angelim, o principal líder da Cabanagem, a maior insurreição popular da história brasileira (irrompida em 1835), rejeitou as propostas insinuantes de autonomia de um representante britânico, colocando-o para correr.


Documentos oficiais ingleses, aos quais só recentemente se teve acesso, revelaram que o próprio governo brasileiro, na época chefiado pelo regente paulista Diogo Feijó (em nome do imperador Pedro II, ainda menor), autorizou a Inglaterra a invadir secretamente a convulsionada província para reprimir os rebeldes.


Em meio século vieram abaixo áreas equivalentes a três vezes o tamanho do Estado de São Paulo, que concentra um terço da riqueza nacional /APOLO11



A tarefa estava além das possibilidades das tropas brasileiras, empenhadas em combater outra grave insurreição, a dos Farrapos, no outro extremo do país, o Rio Grande do Sul.


Navios da armada inglesa (a mais poderosa da época) estiveram em Belém e seu comandante concluiu que dominaria tudo com apenas 150 fuzileiros navais. Se quisesse fazer da Amazônia uma nova Índia, era o momento. Feitos os cálculos, Sua Majestade verificou que lucraria mais mantendo a nacionalidade brasileira. Ao invés de tropa, mandou seu banco e financiou o início da exploração da borracha. O Banco do Brasil levou quase um século para se instalar na região, depois de criado.

 Lorde rejeita proposta do regente
O Ministro das relações exteriores da Inglaterra, Lorde Palmerston, instruído pelo embaixador no Rio de Janeiro, não aceitou a proposta de Feijó para a invasão secreta, a repressão e a pacificação da província distante, que seria devolvida então ao governo imperial. Apresentou várias justificativas relacionadas à legalidade e à autodeterminação dos povos, mas, na verdade, tinha em mente números.

 

A Inglaterra ganhou muito dinheiro comprando e financiando a borracha amazônica. E, depois, quando constatada a inviabilidade de aumentá-la na escala exigida, partiu para o sucedâneo asiático, a partir de sementes coletadas no Pará. Tudo dentro da lei. Sem contrabando, ao contrário do que proclama outra lenda compensatória.


 
A “pacificação” da província rebelde, que o governo imperial acabou por assumir, foi mais sangrenta do que os motins políticos. Depois de cinco anos de conflagração, 20% da população da Amazônia morrera, com maior ênfase na fase da “pacificação”. Se fosse hoje, seriam mais de dois milhões de mortos. Há algo semelhante na história do Brasil? Não é tão frequente nem na belicosa história da humanidade.



Histórias de pé quebrado sobre a “cobiça internacional” da literatura geopolítica têm servido de habeas corpus ao saque dos recursos amazônicos, inclusive humanos, praticado pelos nacionais. Possibilitam até a pilhagem internacional, sem chamar a atenção da opinião pública, condicionada a achar que internacionalização é sinônimo de invasão armada.



Foi assim que o governo federal conseguiu criar o Sivam (Sistema de Vigilância da Amazônia). Dizia-se que os Estados Unidos aproveitariam uma manobra militar conjunta na vizinha (ex-inglesa) Guiana (o Brasil foi convidado e não aceitou), para ensaiar a invasão da Amazônia. Usaria o conceito de “soberania limitada”, ao qual a Amazônia estaria sujeita por ser patrimônio da humanidade.


Deixar de ser Amazônia

Assim, o Sivam, mesmo custando dois bilhões de dólares, não passou por concorrência pública. Era mais uma ação de emergência pela defesa da ameaçada segurança nacional na Amazônia, alvo da insaciável cobiça internacional. A dispensa de licitação criou um dos escândalos que abalou a administração do presidente Fernando Henrique Cardoso.


 
De lá para cá as exportações amazônicas cresceram mais de quatro vezes, a participação acionária de empresas estrangeiras se expandiu e os vínculos ao mercado mundial foram reforçados. Há menos “espaços vazios”, não só porque a população cresceu a uma taxa superior à da média nacional, como porque os pioneiros que abrem essas frentes foram responsáveis pelo maior desmatamento de toda história da humanidade: em meio século puseram abaixo área equivalente a três vezes o tamanho do Estado de São Paulo, que concentra um terço da riqueza nacional.


Ou seja: integrada, para não ser entregue aos piratas estrangeiros (ou aos marines americanos), a Amazônia paga aos seus protetores um preço. O de deixar de ser Amazônia. É assim que se torna Brasil, finalmente.


Editor do Jornal Pessoal





A FORDLÂNDIA NA AMAZÔNIA

Durante décadas, no pós-II Guerra, o povo estadunidense foi sempre empolgado por ações militares vitoriosas. O primeiro forte abalo foi sentido com a humilhante derrota no Vietnã, há 35 anos. Uma sensação que está novamente na ordem do dia com os fracassos verificados no Afeganistão e no Iraque, de onde partem diariamente mais corpos a enterrar e mais soldados mutilados ou abalados emocionalmente. Eles começam a construir uma história de fracassos.

Talvez isso explique o sucesso do livro Fordlândia – A ascensão e a queda da cidade perdida na selva de Henry Ford, do historiador Greg Grandin, considerado um dos melhores títulos da temporada de 2009 e o melhor para algumas das publicações mais prestigiosas dos EUA, como The New York Times e The New Yorker. Grandin é um especialista em história das Américas. O mesmo frisson que ele causou com Fordlândia já havia sido experimentado com uma de suas obras anteriores: A Oficina do Império: América Latina, EUA e a queda do novo imperialismo.

Para compreender a ousadia do grande magnata norte-americano que decidiu construir uma cidade-modelo na selva amazônica brasileira é preciso antes conhecer um pouco da biografia, da personalidade e das formas de experimentação com que Henry Ford se tornou o construtor do moderno capitalismo americano.

Nascido numa fazenda próxima a Detroit, filho de um irlandês com uma belga, Ford era um internacionalista desde a origem. O mundo seria seu campo de ação. Seu método inovador – o fordismo, baseado na linha industrial de montagem – sacudiu a humanidade. Foi um impulso inovador à produção industrial planetária. Enquanto tecia seu sonho de avançar pelo mundo, quando ainda nem se sonhava com a explosão chinesa, ele adotou um filho chinês. Era como se estivesse vislumbrando o futuro, uma de suas características mais marcantes.

Desde cedo se interessou pelas máquinas agrícolas, mas detestava o trabalho no campo. Não era pela agricultura, portanto, que ele estava fascinado, mas pelos motores. Desmontava desde relógios até maquinários e chegou registrar 161 patentes de novas invenções.

Mesmo depois de se afirmar como dono de um império, com siderúrgicas, usinas, navios, ferrovia e minas de carvão, ele continuou o mesmo mecânico do passado. Hoje, qualquer executivo medíocre lhe daria um baile: mau gerente, mau administrador, gostava da oficina, mas detestava contabilidade, banqueiros (tinha por eles uma aversão antissemita) e guardava com ele mesmo seu dinheiro vivo.