Deus me deu um amor no tempo de
madureza,
quando os frutos ou não são
colhidos ou sabem a verme.
Deus - ou foi talvez o Diabo -
deu-me este amor maduro,
e a um e outro agradeço, pois que
tenho um amor.
Pois que tenho um amor, volto aos
mitos pretéritos
e outros acrescento aos que amor
já criou.
Eis que eu mesmo me torno o mito
mais radioso
e talhado em penumbra sou e não
sou, mas sou.
Mas sou cada vez mais, eu que não
me sabia
e cansado de mim julgava que era
o mundo
um vácuo atormentado, um sistema
de erros.
Amanhecem de novo as antigas
manhãs
que não vivi jamais, pois jamais
me sorriram.
Mas me sorriam sempre atrás de
tua sombra
imensa e contraída como letra no
muro
e só hoje presente.
Deus me deu um amor porque o
mereci.
De tantos que já tive ou tiveram
em mim,
o sumo se espremeu para fazer
vinho
ou foi sangue, talvez, que se
armou em coágulo.
E o tempo que levou uma rosa
indecisa
a tirar sua cor dessas chamas
extintas
era o tempo mais justo. Era tempo
de terra.
Onde não há jardim, as flores
nascem de um
secreto investimento em formas
improváveis.
Hoje tenho um amor e me faço
espaçoso
para arrecadar as alfaias de
muitos
amantes desgovernados, no mundo,
ou triunfantes,
e ao vê-los amorosos e transidos
em torno,
o sagrado terror converto em
jubilação.
Seu grão de angústia amor já me
oferece
na mão esquerda. Enquanto a outra
acaricia
os cabelos e a voz e o passo e a
arquitetura
e o mistério que além faz os
seres preciosos
à visão extasiada.
Mas, porque me tocou um amor
crepuscular,
há que amar diferente. De uma
grave paciência
ladrilhar minhas mãos. E talvez a
ironia
tenha dilacerado a melhor doação.
Há que amar e calar.
Para fora do tempo arrasto meus
despojos
e estou vivo na luz que baixa e
me confunde.
Drummond (1902-1987)
Foto: Antonio Maia
Drummond ganhou de presente um amor no tempo da madureza, como ele diz. Um amor, penso eu, quando ele estava finalmente pronto, pronto para amar diferente. Angústia ou carícia, pronto para receber as duas. Pronto para estar em paz, para que finalmente não seja necessário ferir, nem tolerar.
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