Querido João,
Já é quase final de ano. Pela primeira vez, você e eu não
estaremos juntos na virada, tapando as orelhas na hora dos rojões, olhando o
céu riscado de fogos, enchendo a pança de maionese, farofa, arroz com uva
passa. Este ano, como acontece a muitas das crianças quando os pais tomam
caminhos diferentes na vida, você passou o Natal comigo e, nada mais justo, no
réveillon vai estar com a mamãe.
Então, como eu sei que a saudade vai bater violenta quando
der meia-noite e você não vai estar por perto para me mostrar bagunceiro os
quatro zeros no relógio do celular, eu resolvi escrever esta cartinha a você.
Porque assim, desde já, é como se você estivesse aqui pulando, derrubando a
casa, irritando a vizinha infeliz do andar de baixo, fazendo todas aquelas
perguntas que eu nem imagino de onde surgem. E eu tentasse respondê-las
enquanto a gente luta contra o sono e sente o maior dó dos cachorros torturados
pela barulheira dos fogos. Cada um tem um jeito de lidar com as coisas da vida,
meu filho. O meu é este. Batucando para fora o que passa aqui dentro.
Aliás, escrever-lhe esta cartinha ganhou um novo e
maravilhoso sentido agora que você se tornou um leitor tão curioso e voraz. E
apesar da minha pacholice de ver meu pequeno deslumbrado com a própria
capacidade recente de compreender e reproduzir palavras, palavrinhas e
palavrões por escrito, eu sei que esta cartinha você só irá ler mais tarde,
daqui a um monte de anos. Porque o conteúdo dela é aborrecido e profundo demais
para dias de muita festa e pouca idade. Longo o bastante para um leitor
iniciante e inocente como você é hoje.
No entanto, mesmo sabendo que não vai ler isso agora, aí vão
duas ou três observações para o meu homenzinho na manhã da vida, se
alfabetizando das coisas do mundo, encantado com a descoberta das letras que
formam sílabas e compõem palavras. E que juntas dizem frases e contam histórias
como a nossa.
Um dia, no futuro, quando ler estas bobagens você vai saber
que, lá atrás, este seu quase velho pai já o amava de toda a vida e passava
mais tempo pensando em você do que ele mesmo imaginava. Entre todos os seus
afazeres de criança, adolescente ou quase adulto, talvez você pare um segundo e
pense “é, acho que o velho gostava mesmo de mim”. E vai me ligar do seu iPhone
21, com comando de pensamento, me convidando para assistir ao seu lado a um
velho e riscado blu-ray do Homem de Ferro.
Mas enquanto espera ser encontrada por você, que esta meia
dúzia de palavras seja vista pelos amigos. Afinal, testemunhas valem ouro.
Tanto nos juramentos de quem se casa quanto nesta declaração de amor de um pai
por seu único e mais que amado filho.
Tudo isso é para dizer a você que o mundo é um jardim de
rodas gigantes, meu filho. Sabe aquela roda gigante do parquinho? Cada um de
nós é uma delas. Somos todos rodas, rodinhas e rodonas rodando pela vida,
revezando instantes lá em cima e lá embaixo, embarcando nas outras pessoas, em
seus grandes círculos iluminados e em movimento, subindo e descendo.
Vez ou outra, estamos lá no topo da roda. No lugar mais alto,
de onde dá pra sentir o sol mais perto, queimando nossa testa com o fogo de
existir. Dali de cima dá pra ver a cidade inteira, as casas e os prédios como
miniaturas de um brinquedo e as pessoas pequenininhas lá embaixo. Às vezes a
roda para justo quando a gente está lá no alto. E isso é um presente. Tudo fica
suspenso, o mundo congela no instante supremo, você segura o xixi e não pensa
em mais nada. Porque tudo se resume àquele momento de grandeza, que, aliás,
muita gente adora chamar de “paz”.
É quando sobra tempo de olhar devagar o céu e as nuvens. Dá
tempo de procurar lá embaixo a direção da nossa casa. Tempo de curtir a
paisagem como se o mundo todo fosse aquela sensação de desprendimento absoluto.
Quando esse instante chegar, meu filho, aproveite!
Porque, claro, também há dias em que a roda gigante para com
a gente lá embaixo, ou lá no meio. É quando a gente parece não ter muita
importância. Quando estamos “em baixa”. Acontece. Assim como também chega a
hora em que a gente deve desembarcar da roda e dar o lugar a outros
passageiros.
É da vida, meu pequenino viajante. De todas as rodas gigantes
do mundo, em pouquíssimas delas a gente tem cadeira cativa, perpétua,
vitalícia. Quando isso acontece, a gente valoriza o quanto pode. E, olha, às
vezes até esses lugares a gente perde.
Agora, tão importante quanto tudo isso é você valorizar as
rodas em que embarcar. E nunca esquecer de que na sua roda gigante entra só
quem você quiser. E fica só quem você escolher. Portanto, escolha direitinho e
cuide bem dos seus passageiros.
Daqui, resta dizer que você é o meu passageiro preferido. É
por pessoas como você que esta roda segue rodando.
Já é quase fim de ano. Divirta-se por aí e volte logo para me
contar como estava a praia. Por aqui, nossa roda gigante continua esperando por
você.
Feliz Ano Novo, meu filho. Um beijo e até já!
Com amor, papai.
Fonte: Revista Bula
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