Poeta - Carlos Drummond |
Fazendeiro sem fazenda,
eu escuto a tua moenda
moendo a cana dolorida
de que escorre intenso caldo
com gosto de sangue e vida;
teu trigo de nuvens, alto,
contemplo, que surge em ouro
do teu brejo de lembranças,
e perscruto salso coro
de póstumas esperanças;
bebo a tua água de sede,
de todo ti me embriago,
e na tua áspera rede
me vou, me levo, me trago,
de chão e dia me esqueço:
montado no teu cavalo,
densas roças atravesso,
a longínquos ventos falo,
sobre bocas cismadoras
velhos bigodes escuto,
que percorrem as lavouras,
impondo seu estatuto;
vejo um anjo: é fel e doce,
tomou tua mão de infância
e pelo escuro te trouxe;
tua essência e circunstância
vão subindo ausente escada
de tênue casa de lua;
flor de palavra fechada
em tua alma se insinua;
rosa-cardo desabrocha
o seu perfume de espinho
no cimo da tua rocha,
destila pungente vinho
na corola de uma taça,
tingindo-a amargosamente;
pelo seu terreiro esvoaça
vôo de canto silente,
e o colhes entre teus lábios,
e a ele teu dom se mistura;
engendras teus astrolábios,
constróis teus abismos e altura,
dás olhar a escuros seres
desces a peitos opacos
e vês sombrios haveres,
letras, horas, cinzas, cacos;
compões palhadas e esteiras,
abacelas as raízes
alporcas fuscas roseiras,
estrumas cansadas terras,
cuidoso limpa os pastos,
cavalo, pensas e ferras,
voas sobre os campos vastos;
voltas, casas as camélias,
fenas e ensilas forragens,
desgalhas árvores velhas,
e os teus pés engolem viagens
para amanhares alqueires;
e regas os teus transplantes,
examinas teus alfeires,
com sábias mãos incessantes
podas, sachas e mondas,
e em cada de tuas tulhas
teus grãos de estrelas escondes,
sóis disfarçados debulhas
das mais inscientes espigas;
se penetras nas senzalas,
em seu negrume respigas
brilhos de duras opalas;
és tu a foice e a colheita
dos teus íntimos idiomas,
e indelével lua espreita
ruas de tempo em que assomas.
eu escuto a tua moenda
moendo a cana dolorida
de que escorre intenso caldo
com gosto de sangue e vida;
teu trigo de nuvens, alto,
contemplo, que surge em ouro
do teu brejo de lembranças,
e perscruto salso coro
de póstumas esperanças;
bebo a tua água de sede,
de todo ti me embriago,
e na tua áspera rede
me vou, me levo, me trago,
de chão e dia me esqueço:
montado no teu cavalo,
densas roças atravesso,
a longínquos ventos falo,
sobre bocas cismadoras
velhos bigodes escuto,
que percorrem as lavouras,
impondo seu estatuto;
vejo um anjo: é fel e doce,
tomou tua mão de infância
e pelo escuro te trouxe;
tua essência e circunstância
vão subindo ausente escada
de tênue casa de lua;
flor de palavra fechada
em tua alma se insinua;
rosa-cardo desabrocha
o seu perfume de espinho
no cimo da tua rocha,
destila pungente vinho
na corola de uma taça,
tingindo-a amargosamente;
pelo seu terreiro esvoaça
vôo de canto silente,
e o colhes entre teus lábios,
e a ele teu dom se mistura;
engendras teus astrolábios,
constróis teus abismos e altura,
dás olhar a escuros seres
desces a peitos opacos
e vês sombrios haveres,
letras, horas, cinzas, cacos;
compões palhadas e esteiras,
abacelas as raízes
alporcas fuscas roseiras,
estrumas cansadas terras,
cuidoso limpa os pastos,
cavalo, pensas e ferras,
voas sobre os campos vastos;
voltas, casas as camélias,
fenas e ensilas forragens,
desgalhas árvores velhas,
e os teus pés engolem viagens
para amanhares alqueires;
e regas os teus transplantes,
examinas teus alfeires,
com sábias mãos incessantes
podas, sachas e mondas,
e em cada de tuas tulhas
teus grãos de estrelas escondes,
sóis disfarçados debulhas
das mais inscientes espigas;
se penetras nas senzalas,
em seu negrume respigas
brilhos de duras opalas;
és tu a foice e a colheita
dos teus íntimos idiomas,
e indelével lua espreita
ruas de tempo em que assomas.
*
Homem de pranto sem pranto,
que soluças, do teu barro
escondido sob o manto,
vida e amor — anéis sem aro;
Homem triste de Itabira
que do galpão da memória
extrais a nublosa tira
de uma estrada merencória.
revelhas arcas exumas,
cavalgas teu submarino
dentro de argilas e brumas,
pões no bolso o raro sino
de murcho som de violetas
esferas de sumos grossos
e pélagos de ondas pretas
que comoveram teus ossos
no ontem país dos Andrade,
— colhe a voz que, há quarenta anos
mais um, te disse amizade,
e no vale dos enganos
nunca se enganou contigo,
tua voz de ouro calado,
amaridúlcido amigo!
sulcos de teu grave arado,
teu sideral moenda,
fazendeiro sem fazenda.
que soluças, do teu barro
escondido sob o manto,
vida e amor — anéis sem aro;
Homem triste de Itabira
que do galpão da memória
extrais a nublosa tira
de uma estrada merencória.
revelhas arcas exumas,
cavalgas teu submarino
dentro de argilas e brumas,
pões no bolso o raro sino
de murcho som de violetas
esferas de sumos grossos
e pélagos de ondas pretas
que comoveram teus ossos
no ontem país dos Andrade,
— colhe a voz que, há quarenta anos
mais um, te disse amizade,
e no vale dos enganos
nunca se enganou contigo,
tua voz de ouro calado,
amaridúlcido amigo!
sulcos de teu grave arado,
teu sideral moenda,
fazendeiro sem fazenda.
Nota do Editor à época da publicação:
"N. da E. — Esta bela poesia de Abgar Renault foi publicada em "O Estado de São Paulo (Sup. Lit., 29/6/1963), meses após ter Carlos Drummond completado 60 anos. Agradecemos ao eminente escritor a honra de nos autorizar a incorporá-la (revista) nesta Seleta."
"N. da E. — Esta bela poesia de Abgar Renault foi publicada em "O Estado de São Paulo (Sup. Lit., 29/6/1963), meses após ter Carlos Drummond completado 60 anos. Agradecemos ao eminente escritor a honra de nos autorizar a incorporá-la (revista) nesta Seleta."
Abgar de Castro Araújo Renault, professor, educador, político, poeta, ensaísta e tradutor, nasceu na cidade de Barbacena (MG) no dia 15/04/1901.
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