Precisamos de mais pessoas como Mandela.
Pessoas que são capazes de usar a força quando necessário e
adotar uma atitude conciliadora quando preciso. Mas que não descartam qualquer
uma das duas acões políticas.
Por conta da morte de Mandela, estamos sendo soterrados por
reportagens que louvam apenas um desses lados e esquece o outro, como se as
folhas de uma árvore existissem sem o seu tronco e os galhos. O apartheid não
morreu apenas por conta do sorriso bonito e das falas carismáticas do líder
sul-africano, mas por décadas de luta firme contra a segregação coordenada por
uma resistência que ele ajudou a estruturar.
É fascinante como regimes execrados pelo Ocidente foram,
muitas vezes, os únicos que estenderam a mão a Mandela e à luta contra o
apartheid. E como, décadas depois, muitos países prestam suas homenagens a ele,
sem um mísero mea culpa por seu papel covarde durante sua prisão. Ou, pior:
como veículos de comunicação desse mesmo Ocidente ignoram a complexidade da
luta de Mandela, defendendo que o pacifismo foi o seu caminho.
Desculpem, mas a necessária conciliação para curar feridas
ou a tolerância são diferentes de injustiça. E ser pacifista não significa
morrer em silêncio, em paz, de fome ou baioneta. A desobediência civil
professada por Gandhi é uma saída, mas não a única e nem cabe em todas as
situações em que um grupo de pessoas é aviltado por outro.
"Eu celebrei a ideia de uma sociedade livre e
democrática, na qual todas as pessoas vivam juntas em harmonia e com
oportunidades iguais. É um ideal pelo qual espero viver e o qual espero
alcançar. Mas, se for necessário, é um ideal pelo qual estou pronto para
morrer'', disse ele, ao ser condenado a 27 anos de prisão.
As histórias das lutas sociais ao redor do mundo são
porcamente ensinadas. Ao ler o que os jovens aprendem nas carteiras escolares
ou no conteúdo trazido por nós jornalistas, fico com a impressão que a
descolonização da Índia, o fim do apartheid na África do Sul ou a independência
de Timor Leste foram obtidas apenas através de longas discussões regadas a chá
e um pouco de desobediência. Dessa forma, a interpretação dos fatos, passada
adiante, segue satisfatória aos grupos no poder.
Muitos que hoje lamentam por Mandela detestam manifestações
públicas e mudanças no status quo.
Adoram um revolucionário quando este é reconhecido
internacionalmente e aparece em estampas de camisetas, mas repudiam quem ocupa
propriedades, por exemplo, "impedindo o progresso''.
Leio reclamações da violência de protestos quando estes vêm
dos mais pobres entre os mais pobres – "um estupro à legalidade" –
feitas por uma legião de pés-descalços empunhando armas de destruição em massa,
como enxadas, foices e facões. Ou contra povos indígenas, cansados de passar
fome e frio, reivindicando territórios que historicamente foram deles, na
maioria das vezes com flechas, enxadas e paciência. Ou ainda professores que
exigem melhores salários e resolvem ir às ruas para mostrar sua indignação e
pressionar para que o poder público mude o comportamento. Todos eles são uns
vândalos.
Daí, essa pessoa que ama Mandela, mas não sabe quem ele é,
pensa: poxa, por que essa gente maltrapilha simplesmente não sofre em silêncio,
né?
Muitas das leis criticadas em protestos e ocupações de terra
ou mesmo no apartheid não foram criadas pelos que sofrem em decorrência de
injustiça social, mas sim por aqueles que estavam ou estão na raiz do problema
e defendem regras para que tudo fique como está. Nem sempre a legalidade é
justa. E essa frase assusta muita gente.
Mandela é a inspiração. Com ele, é possível acreditar que
manifestações populares e ocupações resultem nos pequenos vencendo os grandes.
E, com o tempo, os rotos e rasgados sendo capazes de sobrepujar ricos e
poderosos.
Por isso, o desespero inconsciente presente em muitas
reclamações sobre a violência inerente ou involuntária desses atos. Ou na
tentativa de reescrever a história editando aquilo que não interessa.
Enquanto isso, mais um indígena foi morto no Mato Grosso do
Sul. Mas tudo bem. Devia ser apenas mais um vândalo, não um homem de bem como
Mandela.
Enfim, precisamos de mais pessoas como Mandela. Pois os bons
do século 20 estão morrendo antes que realmente entendamos suas mensagens.
Fonte: Blog do Sakamoto
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