domingo, janeiro 26, 2014

AMOR À NOVELA

Exercitei minha verve através de Félix. Tenho um lado irônico, por que não dizer venenoso
  

Sempre é assim. Entro de luto, ao acabar de escrever uma novela. Os capítulos finais ainda estão no ar, mas já dói. Meu imediato desejo é me internar num mosteiro trapista, com voto de silêncio. Inclusive já verifiquei na internet: há vários no país, e a aura de espiritualidade é tão grande que nem sequer cobram a estadia. Não sou o único: um de meus colaboradores já marcou viagem para a Índia, onde ficará em silêncio num retiro espiritual. Depois, pegará sozinho um trem para refazer os caminhos de Buda. Detalhe: ele não é budista, talvez até esteja se tornando, mas isso é coisa de alguns meses para cá. Sou mais prático. Se é para ficar em silêncio, por que ir até a Índia, me adaptar a uma dieta à base de curry e vegetais e sacolejar num trem em cabine para quatro? Mais fácil recorrer aos trapistas mais próximos. É o que pretendo fazer.



Sempre trabalho de noite. Dá uma falta, um vazio, uma tristeza tremenda agora, todas as noites, ao terminar de assistir ao capítulo e não ter o que fazer. A não ser esperar a madrugada para fumar meu charuto e pensar sobre... a novela! Sentirei uma falta profunda, não nego, de Félix (Mateus Solano) e da relação com seu pai, César (Antônio Fagundes). Quando me entrevistam, costumo dizer que gosto de todos os personagens, porque, em alguma medida, eles refletem uma parte de mim. Até Márcia (Elizabeth Savala), que tem um lado amoroso e outro interesseiro, tem muito a ver com meu espírito emocional e prático ao mesmo tempo. Sem contar que adoro hot dog! A minha relação com meu pai, João, devo dizer, não tem a ver com a de Félix e César. Meu pai era um homem simples, mas que me apoiava profundamente, inclusive na carreira de escritor – que ele considerava uma loucura, mas, se eu queria, estava do meu lado. A intensidade dessa relação Félix e César me toca profundamente, porém. E, através de Félix, exercitei minha verve ao longo de meses. Tenho um lado irônico, por que não dizer venenoso.  Passo a vida me contendo para não dizer, inocentemente, uma verdade horrível a alguém, simplesmente porque costumo ser franco. (E só depois arco com os estragos dessa franqueza rude.) Com Félix, me diverti. Pelas palavras do personagem, disse  o que tenho vontade de responder em milhares de situações. Como quando a mãe, Pilar (Suzana Vieira), disse que era loira de nascença. Félix lembrou que provavelmente nem ela se lembrava mais da cor original dos cabelos. Quantas vezes tive vontade de dizer o mesmo a “loiras naturais”? Félix mostrou seu modo peculiar de ver o mundo. Quando escrevo uma novela, livro ou peça, a partir de certo momento o personagem se torna uma espécie de amigo, alguém com quem convivo e bato papo diariamente. Também, a necessidade absoluta de amor de Félix me envolveu. E a rejeição do pai. Todos nós, ao longo da vida, não sentimos falta de amor, sofremos com a rejeição?



Em outros personagens, revivi pessoas próximas a mim. O amor de Bernarda (Nathalia Timberg) e Lutero (Ary Fontoura) tem muito a ver com o fato de minha mãe, já viúva, idosa, ter começado a namorar. E viveu, até a morte, uma bonita história de amor com um vizinho de sua idade, que a acompanhou no hospital até os últimos momentos. Escrever fez com que me reaproximasse de minha mãe, de quem sinto saudade. Talvez por isso Amor à vida tenha tocado em temas importantes, modéstia à parte, como a homofobia, que passou a ser discutida nos lares brasileiros. Tenho tido muitos testemunhos pessoais, de gays que passaram a ser aceitos por suas famílias a partir do debate sobre o tema na novela. Principalmente porque meu foco não foi a homoafetividade em si, mas as relações estabelecidas na família, entre pais e filhos, e o desejo de adotar ou ter um filho por inseminação artificial.



Já escrevi a palavra “FIM”. Para um autor, todo “FIM” é um novo recomeço. Mas preciso desse tempo de luto, para as ideias renascerem, para me sentir vivo, inteiro novamente. E só como autor eu consigo me sentir inteiro.


Agora, é me despedir. Adeus, Félix! Adeus, César, Paloma, Bruno, Aline (safada!), Amarilys (safadíssima), Niko, Eron, Gigi, Márcia – Tetê Parachoque e Paralama, AtílioGentil, Valdirene, Palhaço, Ninho, Linda, Rafael, Ordália... nossa, tanta gente. Nós, autores e atores, vamos nos reencontrar, com certeza. Dos personagens, nos despedimos agora, mas tenho certeza de que, por toda a vida, um pouco de todos eles sempre estará dentro de mim.

WALCYR CARRASCO

Fonte: Época

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