A peça, de Plínio Marcos, se passa em um quarto de bordel,
onde a prostituta Neusa Sueli, o cafetão Vado e o homossexual Veludo, empregado
do estabelecimento, encarnam a existência subumana e marginalizada. A montagem,
proibida pela Censura, na seqüência ganha repercussão no Rio de Janeiro,
dirigida por Fauzi Arap e trazendo Tônia Carrero no papel feminino.
Retrato naturalista do submundo brasileiro em que as gírias,
a violência das relações humanas, a situação opressora e a luta de cada
personagem constroem um quadro cuja dramaticidade sobrevive ao tempo, Navalha
na Carne é a obra mais encenada do dramaturgo, ao lado de Dois Perdidos Numa
Noite Suja. A peça pode ser vista como metáfora dos mecanismos de poder entre
as classes sociais brasileiras, uma vez que as personagens, embora pertençam ao
mesmo extrato social, se dedicam a uma contínua disputa pelo domínio sobre o
outro. Nessa disputa, as personagens vão da força física à chantagem pela
autopiedade, da sedução à humilhação, da aliança provisória entre dois na
tentativa de isolar o terceiro, mas a possibilidade de juntar suas forças para
lutar contra a situação que os oprime nunca é cogitada.
A peça é levada a público em 1967, inicialmente, em parceria
com George, texto de John Anthony West, no Centro de Estudos Teatrais que tem
suas récitas na cobertura do apartamento de Cacilda Becker e Walmor Chagas, em
São Paulo. O objetivo do "Centro" é divulgar, através de leituras
dramáticas, originais brasileiros. Esta apresentação, porém, trata-se da
encenação que, já pronta para estrear, é interditada pela Censura.
Cacilda e Walmor convidam o grupo para uma encenação em sua
residência a fim de mostrar a peça aos críticos e intelectuais atuantes na cena
teatral do momento. Após as apresentações dos textos, os presentes firmam um
parecer, a ser encaminhado ao ministro da Justiça, Luiz Antonio da Gama e
Silva, não só protestando contra a proibição da peça, como pedindo a sua
liberação imediata, atendendo assim os compromissos do grupo.
A encenação paulista é realizada em setembro de 1967. Mas o
texto chama a atenção na montagem carioca, em outubro do mesmo ano, encabeçada
por Tônia Carrero. Ressalta o crítico Yan Michalski: "A impiedosa autenticidade
psicológica dos personagens, a clareza da análise dos problemas da sua
integração no subumano mundo em que vivem, a extrema densidade do clima, o
virtuosismo do diálogo. (...) uma peça à qual se assiste com a respiração
presa, e a cujo fascínio não escapa nem o público mais conservador, a priori
menos disposto a enfrentar cara a cara a crueldade e a violência (...)".1
Fauzi Arap dirige o espetáculo obtendo o máximo de sintonia
entre o texto e as idéias expressas pelas ações das personagens. Sem fazer
concessões ao público, o diretor trabalha sobre a violência física, que explode
da vida interior das personagens. Tônia Carrero dá à prostituta, por meio de
uma construção detalhada e emocional, uma existência própria que, segundo os
críticos da época, fazem esquecer a imagem bela e apolínea da atriz. Yan
Michalski, considerando seu trabalho o mais sensível e completo de sua
carreira, escreve: "Por mais que os grandes momentos dramáticos me tenham
emocionado, a lembrança mais forte que guardarei do seu desempenho é a das suas
cenas de segundo plano, quando, com gestos apenas esboçados ou com discretas
reações fisionômicas, ela traduz a poética e atormentada alma de Neusa
Sueli".2
Parcialmente censurada em 1967, a peça só retorna aos palcos
montada na íntegra treze anos depois.
Notas
1. MICHALSKI, Yan. Reflexões sobre o teatro brasileiro no
século XX. Rio de Janeiro: FUNARTE, 2005. p. 97.
2. Idem. p. 99.
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